A evolução das forças de segurança e defesa é um assunto particularmente sensível, importante e difícil. Ninguém duvida que as novas necessidades de segurança e defesa justificam a reconfiguração tecnológica e humana de todos os actores envolvidos, mas o problema surge ao tentar encontrar o modelo de evolução mais eficaz e uma abordagem patrocinada por todos.
O papel do Estado é obviamente fundamental e catalisador da transformação das Armadas, das Forças de Segurança, dos Serviços de Informações e até da própria indústria do sector. Há até o risco de se pensar que esse papel é apenas do Estado, o que não é verdade. As indústrias de defesa também fazem parte do processo e não são todas tuteladas pelo Estado. Uma parte importante de empresas privadas, nacionais e internacionais estão a ter um sucesso considerável no sector e a sua participação é cada vez maior.
A visão integrada das necessidades de segurança e defesa e respectivas indústrias não é nova, dado o papel cada vez mais importante da tecnologia nas forças armadas e nas forças de defesa. A tecnologia passou, aliás, a assumir um papel absolutamente determinante a partir do século XX em todos os sectores e em particular no da segurança e defesa.
É com esta consciência que alguns países desenvolvem de forma eficaz o sector da segurança e defesa naquilo a que se convencionou chamar de Complexo Militar Industrial. À frente desse desenvolvimento estão os EUA e, na Europa, o Reino Unido, seguido de não muito longe pela França e pela Alemanha.
Em 1960, nos EUA, o complexo militar industrial era já tão forte que o Presidente Eisenhower se referiu a ele de uma forma menos positiva no seu célebre discurso de despedida. Ele alertou para a importância económica deste sector e para o risco de se poder subverter o seu papel e tornar o poder político dependente de motivos bélicos por razões económicas...
Não obstante, o complexo militar industrial foi, e está a ser, motor da economia norte-americana. Não será com certeza o único, mas é sem dúvida importante. Na Europa a questão não se coloca da mesma forma porque o complexo militar industrial não é tão forte, e muito menos ainda em Portugal. Mas uma vez que há impactos económicos positivos no desenvolvimento deste sector, a questão que se coloca é de como o fazer desenvolver.
A evolução do complexo militar industrial
As forças de segurança e defesa têm de estar alinhadas com os seus objectivos estratégicos. Quer isto dizer que, tal como com qualquer missão militar, é preciso tentar antever constantemente as necessidades para adequar os meios. A dificuldade está em prever descontinuidades, pois não há bolas de cristal. Mas por vezes há avisos, tais como o 11 de Setembro nos EUA, o 11 de Março em Espanha ou o 7 de Junho no Reino Unido, que não podem ser ignorados.
Ora os meios da segurança e defesa de que dispõe uma nação são constituídos pelas Forças Armadas e Forças de Segurança, mas também pela sua indústria. Há que compreender que estão interligados em rede no contexto das alianças económicas, políticas e militares. Nos anos 90, as histórias das indústrias de defesa europeia e norte-mericana são razoavelmente diferentes. Na era pós-Guerra Fria, os EUA reduziram significativamente os seus gastos com as indústria de defesa, o que originou uma consolidação e concentração consideráveis no sector, num processo de fusões e aquisições que ainda não acabou.
Apesar dos EUA terem diminuído significativamente os investimentos em defesa, tendo reduzido consequentemente cerca de dois milhões de postos de trabalho, ainda mantêm mais outros dois milhões de postos de trabalho directos em actividade no sector privado das indústrias de defesa. Apesar disso, antes do 11 de Setembro, havia a consciência de que existia sobrecapacidade na indústria. Esta consolidação acabou por fortalecer as maiores companhias, que ganharam uma maior capacidade ao nível internacional pelo natural aumento de escala resultante da concentração dos seus actores.
Já na Europa, o esforço de consolidação é completamente diferente, pois a necessidade premente é a da cooperação. A consolidação na Europa passa também pelas fusões e aquisições, mas o posicionamento dos diversos países europeus tem sido centrado, não obstante a existência da Comunidade Europeia, na sua própria defesa e segurança interna. Essa independência dá origem à necessidade de cooperação, que ainda é o passo que tem de ser dado neste sector. A criação da EADS no final dos anos 90 é um bom exemplo de fusões, ao combinar um conjunto de recursos transnacionais num sector verdadeiramente estratégico.
Os sectores aeroespacial e da electrónica são, aliás, os primeiros a consolidar (exemplos disso são a história da própria EADS, da BAE e da Thales). Já no campo dos veículos ou da construção naval, essa consolidação tarda em acontecer. Quando os governos têm menos necessidades de equipamento de defesa é natural haver sobrecapacidade e as empresas mais pequenas tornam-se mais vulneráveis. Portanto, mais do que a simples consolidação das indústrias, o interessante é compreender o caminho da cooperação, porque é na cooperação que podemos ter importantes oportunidades.
A importância da cooperação das indústrias de defesa
A cooperação europeia tem de acontecer nos níveis político e industrial. Ao nível político, várias têm sido, desde os anos 90, as difíceis tentativas de cooperação na Europa. Para além das muitas dezenas de programas específicos de cooperação em matéria de armamento, a institucionalização da cooperação tem vindo a ser tentada, não sem alguns obstáculos. Várias foram também as tentativas de cooperação feitas fora do âmbito do tratado da União Europeia, uma vez que a interpretação do tratado no que diz respeito à segurança e defesa dá ampla liberdade para que cada estado tenha a sua própria política relativamente ao sector.
No início dos anos 90 foi criado o, entretanto já extinto, Western European Armament Group (WEAG) com o objectivo de abrir os mercados da segurança e defesa, aumentar a cooperação para a I&D e tentar harmonizar de alguma forma as necessidades dos estados para beneficiar do efeito de escala. Alguns anos mais tarde foi criada a, também já extinta, Western European Armament Organisation (WEAO), com o objectivo de melhorar a cooperação em matéria de armamento, mas só conseguiu de facto ser um simples núcleo de apoio à investigação e desenvolvimento.
Mais interessante foi a criação da OCCAR (Organisation Conjointe de Coopération en matière d'Armement ) a partir de 1996 - um nome curioso com origem gaulesa que se traduz num importante exemplo de cooperação internacional no seio da Comunidade Europeia com o objectivo de aumentar a escala no desenvolvimento das indústrias de defesa. As dificuldades de cooperação estão patentes pelo tempo que esta organização demorou a entrar em funcionamento - cinco anos mais tarde. Criada inicialmente pela França, Alemanha, Itália e Reino Unido, a OCCAR foi alargada com a junção da Bélgica em 2003 e da Espanha em 2005. A Holanda e a Suécia mostraram interesse mas não aderiram, ou não terão tido capacidade para conseguir criar condições para o fazer.
A adesão a esta organização não é fácil, dados os princípios pelos quais se rege e a necessidade de participar em equipas transnacionais nos diversos programas. A OCCAR nasceu, portanto, num clima de difícil cooperação, mas acabou por ser um palco para se discutirem as origens dessas mesmas dificuldade. O maior problema de cooperação começa por ser legislativo, porque os países mantém a sua natural independência no que diz respeito à escolha e utilização das tecnologias de defesa e segurança. Isto torna claramente difícil, estabelecer contratos, gerir orçamentos e fazer adjudicações.
No final dos anos 90 a Comissão Europeia reconheceu a necessidade de dar corpo a uma cooperação legalmente estabelecida e tomou posição nesse sentido. Parece hoje consensual que é no âmbito da União Europeia que deve acontecer a cooperação em matéria de segurança e defesa. O Green Paper de 11 de Março de 2003 é bastante claro relativamente às intenções da Comissão Europeia quanto à criação gradual de um mercado de equipamentos para a defesa (e segurança) - European Defence Equipment Market (EDEM) - e o impacto económico potencial dessa iniciativa.
É neste contexto que aparece a Agência Europeia de Defesa em 2004 (EDA). A EDA representa um esforço de coordenação importante para a investigação e desenvolvimento, com o objectivo de fomentar uma verdadeira indústria europeia de defesa. O programa de I&D para a segurança (ESRP) lançado pela comunidade Europeia foi outro passo importante.
Mais recentemente, em Maio de 2007, os 26 Ministros da Defesa da Comunidade Europeia subscreveram um documento com linhas de orientação estratégicas para o desenvolvimento da base industrial e tecnológica da defesa para a Comunidade Europeia. Este documento é apenas o pontapé de saída de todo o processo. Convém, aliás, não esquecer que a EDA não é gerida pela comissão Europeia e que os países da CE continuam e manter individualmente o seu próprio caminho no que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico e industrial do sector.
Neste contexto, a criação da EDA ajudará com certeza, mas será apenas um passo dos muitos que ainda se terão de dar na Europa no que diz respeito à coordenação, consolidação e desenvolvimento do importante sector da segurança e defesa. Torna-se portanto visível que a consolidação do mercado de segurança e defesa passa pela consolidação ao nível das empresas e também pela cooperação política e empresarial.
Paulo Cardoso do Amaral, Administrador da Sinfic, Professor na Universidade Católica Portuguesa e Vice-presidente da AFCEA Portugal.